As coincidências me incomodam, pois nelas pode-se reparar a tendência de ação do inconsciente coletivo, e como as pessoas revelam características e facetas as quais nem elas mesmas conhecem. E uma delas veio ao meu pensamento hoje: por que todas as pessoas que admiramos, que tomamos como ícones, invariavelmente passaram em algum momento de sua história por momentos de dor e provações? Por que a tendência de divinizar o sofrimento?
Vejamos o primeiro exemplo: os heróis. Sim, os heróis com certeza, porque eles sofrem, e mesmo os mais poderosos passam por momentos difíceis antes de estarem completamente cônscios de suas capacidades, e partirem para um grand finale. Qual herói não esteve em uma situação na qual parecia próximo de seu fim e, num relance de sorte e de revelação, dão a completa volta por cima e acabam em uma apoteose verdadeiramente “heróica”?
Segundo exemplo: líderes, ícones e figuras religiosas. Vejam o estrondoso sucesso do filme “A Paixão de Cristo”, onde o sofrimento de Jesus é mostrado em cenas onde não se poupou nem dramaticidade e nem sangue cenográfico! Dispensável dizer o nível de comoção que causou nas pessoas. São Francisco e suas chagas, São Sebastião e as flechas, Gandhi e sua estrutura corporal frágil agravada por suas greves de fome, Chico Xavier e sua saúde precária, Martin Luther King e o preconceito racial e sua morte estúpida... e nesse sentido muito poderia ser relatado...
Terceiro exemplo, e talvez um bem surpreendente: nossos antepassados. Quantas histórias pessoais e contadas por conhecidos, de avós e bisavós que passaram fome e outras privações materiais, negócios fracassados, terras perdidas, dificuldades para criar seus filhos, casamentos infelizes e sofrimentos ante-mortem. E sempre nossos antepassados são citados como exemplos de figuras merecedoras de respeito e admiração.
No dia a dia, é fácil muitos de nós nos apiedarmos e amolecermos o coração perante idosos pedintes, pessoas acidentadas, crianças marginalizadas, mães e pais sem notícias de seus filhos, mulheres estupradas e pais de família em dificuldades financeiras.
E essas pessoas, ao passarem por dores e sofrimentos, tornam-se admiráveis. Admira-se o seu comportamento perante a provação, seja de resignação e aceitação, ou, e outro extremo, de luta e enfrentamento. Louva-se seus exemplos, os quais suscitam dentro de nós questionamentos sobre quais seriam nossas atitudes perante tais situações, e o quanto suportaríamos. E muitos acreditam que a dor se torna condição exclusiva e necessária para que o ser humano possa entrar em fase de reflexão e mudar hábitos e costumes.
A minha pergunta que fica é esta: Seremos nós pessoas que somente nos modificaríamos, ou evoluiríamos, quando experimentamos determinadas situações, ou sentimos alteradas a rotina a qual nos acomodamos? Algo do tipo “você só pode dizer que não gosta do jiló provando ele!”, ou mesmo, para os mais exaltados “é preciso provar de tudo para que se possa julgar”!
Dentro dessa realidade, reduzimos ao pó o nosso poder de observação e meditação, e subestimamos nossa inteligência. O simples fato de observar a dor alheia, as conseqüências dos atos de outras pessoas e os caminhos que as levaram ao sofrimento não podem nos induzir a pensar e refletir, e dessa forma identificar as CAUSAS desses fatos? A meditação pura e simples, isenta de pré-conceitos e de vícios culturais, profunda no que tange o envolvimento de todas as possibilidades e probabilidades, não seria por si só suficiente para despertar a nossa consciência? Seríamos seres humanos modernos e evoluídos o suficiente para traduzir em ações práticas nossas reflexões íntimas e, por que não dizer, complexas?
Dessa forma, o heroísmo da sobrevivência ao caos e ao desespero é substituído pelo heroísmo da inteligência, da perspicácia e da coordenação entre pensamento e ação. Pode-se então dizer que, atingido esse estágio de pensamento, estamos deixando para trás um mundo de impulsividade e punições, por uma era aonde a observação se torna fonte de prevenção de erros.
Dessa forma, apresento a dicotomia e a polêmica: Evolução pela experiência prática ou pela observação e meditação? A primeira alternativa, típica da cultura ocidental, e a segunda, marcante nas tradições e religiões orientais.
Obs: Impossível não dizer que escrevi isso debaixo da constante lembrança de minha avó. Quando penso nessa portuguesa da Bairrada, que tanto sofreu em sua vida, que tanto lutou pela sua sobrevivência e de seus familiares, e que passou por uma miríade de problemas e transtornos de saúde no fim de sua vida que abalaram seu vigor e seu orgulho próprio, minha admiração e saudade aumentam sensivelmente. Tenha a certeza, Dona Auzinda, que o seu legado, maior do que qualquer herança material, é a sua sabedoria, seu caráter e sua força, que acompanham grande parte de todos que tiveram a imensa sorte de lhe conhecer e desfrutar de sua compania.
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