segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Um Lobisomem Mineiro na Cidade do Salvador - Parte I



Estar acordado às três horas da manhã, sem nenhum sono, e sem paciência para ver nada na televisão, é indicativo de que essa é mais uma daquelas tradicionais noites de guerra com Morfeu. Creio que eu já me acostumei com essa situação, e mesmo meu corpo não dá sinais de cansaço no dia seguinte. E a primeira vista, aqueles que não me conhecem o suficiente, já pensam que eu estou com problemas, que alguma coisa não me deixa dormir. Não deixam de estar completamente certos, pois minha cabeça funciona continuamente pensando mil coisas ao mesmo tempo, mas não é algo diretamente relacionado a problemas.

A idéia recorrente passa na cabeça, dirigir é desestressante. Visto-me rápido, e ao me vestir relembro uma das vantagens de morar aqui, nunca faz frio, não existem complicações maiores com O QUE se vestir. Olho para os gatos, esses sim abençoados, pois dormem de dia, e também de noite, sem nenhuma dificuldade. Mas nesse momento acordam e me olham, e lançam aquele olhar de incredulidade que qualquer pessoa que morasse comigo me lançaria, algo do tipo “Vai sair de casa a essa hora?”. Sem maiores problemas, talvez eles mais do que qualquer um entendem.

Desço, e é hora de acordar o porteiro para abrir o portão. Este sim, apesar de não poder, dorme profundamente. Após diversas tentativas, no qual se balanceia a vontade de acordá-lo com o medo de fazer barulho e incomodar o resto do prédio, consigo. E recebo o terceiro olhar de incredulidade.

Entro, ligo o carro, e Billie Holiday começa a convenientemente conversar comigo, falado de sua “Solitude”. Os fantasmas que assombram Billie talvez tenham a mesma natureza dos meus. Definitivamente, além dos gatos, Billie também pode me entender (e sendo sincero, entendo-a também perfeitamente), e por isso me acompanha nesses momentos.

Caminho a seguir? Claro, a orla. Outra grande vantagem de se morar nessa cidade, não existe remédio melhor do que andar, ou passar de carro na orla, nesses períodos de auto-questionamento. As ondas batendo nas pedras me lembram de algo que me foi dito há muito tempo: “Seja igual à água dos rios, que ao encontrar a pedra, pacientemente desloca seu rumo, contornando seu obstáculo, mas pouco a pouco vai erodindo a pedra, até retornar ao seu curso original”. A mesma coisa acontece com a água do mar enfrentando as rochas da orla, espero eu. E a mesmíssima coisa deve acontecer em minha vida.

Alguns gatos pingados e pardos povoam a fauna noturna da cidade. Lojas de conveniência são paradas obrigatórias deles, aonde uivam para a lua comemorando o seu abandono, regados ao bálsamo etílico amargo, mas eficaz ao servir de ferramenta de desprendimento da realidade. Bebe-se muito nessa cidade, em qualquer hora, qualquer ocasião, talvez a energia desprendida em festas, eventos, ocasiões, se fosse um décimo direcionada para realizações práticas na vida, fariam esse lugar evoluir bastante.

Lembro-me de minha avó... lembro-me de Tia Iêda. Essas lembranças são ótimas para amolecer meu coração, nada melhor do que utilizar os flashes de memória com pessoas as quais vc realmente amou e foi amado por elas, e que representam marcas de vivência que se apagam, para quebrar o gelo da racionalidade. A fase Vulcana se prenuncia em mim, a lógica tem tomado conta de minhas decisões e pensamentos. Quando avalio a realidade e vejo que essa lógica está muito forte, procuro ser um pouco Dr. Spock, meio humano e meio Vulcano. Faço bobagens sendo extremamente racional, mas também sou exímio em executar tolices as mais diversas quando migro para o extremo sentimental.

O vento se torna mais intenso, a chuva começa. Aqui é comum “chover mar”, porque aliada a chuva vem uma forte maresia, e é fácil constatar que as gotas de chuva são salgadas. Meus aparelhos eletrônicos passam na mente, resquício da lógica e da racionalidade, essa maresia está acabando com meu computador (já acabou com um, indubitavelmente acabará com o segundo), vai acabar com minha televisão, com meu som. Às favas com essas preocupações, como diria Dona Auzinda: “Mais tem Deus a dar do que o diabo a carregar”. Diabo? Um fenômeno natural como esse, e eu o delego às forças demoníacas? Ok, “força de expressão”.

Outra espécie comum na fauna noturna são os automobilistas de ocasião, que adoram ruas desertas, e pessoas tentando dormir, para exibir suas “habilidades” ao volante. Mais uma forma de atrair a atenção alheia que têm lhes faltado no cotidiano, e de algum modo tentar extrair de si um PODER, que não conseguem ter em seu trabalho e vida pessoal. Distância deles, gosto muito de meu C3 redondinho para algum palhaço desses fazer qualquer coisa com ele. A Lógica de novo... quem sabe se eu me juntasse a eles, pelo menos desse prazer transitório eu poderia desfrutar? Não, não é o tipo de PODER que quero ter, aliás não consigo ter, e a minha precaução fala mais alto. Meus momentos de atitudes impensadas e de rompantes são, como devem ser todos, raros e imprevisíveis.

Previsibilidade, palavra mais chata, que me enoja. Ser previsível é ser chato, é ser monótono, é ser manipulado pelos outros que agem com vc de uma forma induzindo a uma ação previsível. É conferir a outrem a chave do carro de suas decisões. Por isso tenho o prazer de ser imprevisível, pois adoro reagir de uma forma completamente oposta quando me induzem a determinados comportamentos. O prazer maior fica em ver a cara de espanto de quem esperava um vulcão, e acaba encontrando um riacho calmo, ou vice-versa, claro.

Itapoã, além daqui minha personalidade precavida não me aconselha a ir (Precavida, Ricardo Portela? Sair na rua para dirigir a uma hora dessas é algo precavido?). Tudo bem, vamos voltar. A volta também é pela orla, mais um caminho inteiro para desestressar e pensar. Relembro Viçosa, e de como pude me tornar EU mesmo lá, sem estar a sombra dos outros, e sem ser um robô programado a repetir a trajetória de meu pai, como esperavam que eu fosse em Miguel Pereira. O melhor de lembrar da época de graduação e mestrado é que foram tantas pessoas que atravessaram meu convívio nesse tempo, que é impossível de lembrar de todas ao mesmo tempo, e de todas as situações também. O mais prazeroso é que, de repente, surgem na memória fatos ou indivíduos do qual não se recordava há muito, e achá-los nessa revirada do baú me suscita novos questionamentos e formas de encarar a vida.

Placaford, Pituaçú, Piatã... chegando perto de casa. Os coqueiros que se adaptam ao vento, se curvam a ele, mas não caem (na maioria das vezes...) me lembram da adaptabilidade. Avisam que conseguir se moldar a realidade é fator indiscutível para poder viver. Fico rindo comigo mesmo ao lembrar da frase “Na Bahia tem mais artistas do que coqueiros”. Não deixa de ser uma grande verdade, além do povo ter uma grande vertente artística, e não ter pudor em expressá-la, associado a isso tem muita gente que gosta de viver de arte, pensamentos, idéias, mas que raramente as coloca em prática. Imobilismo associado a conformismo, com um ligeiro tom de preguiça. Sem generalizações, por favor, mas muitos conduzem sua vida assim.

Vou me agregar aos animais da fauna dos postos de conveniência. Mas apenas transitoriamente, para adquirir as pílulas de prazer as quais me dou a liberdade de consumir: M&M. Entro e saio do modo mais à francesa que posso, não quero ser notado por eles, prefiro sair incólume de comentários e predicações. E de posse de meu vício, retorno para casa.

Mais uma tentativa frustrada de acordar o porteiro. Bater o farol alto não adianta. Terei que dar aquela leve buzinadinha, assumindo o risco de incomodar alguém dos andares mais baixos. Em uma grande dificuldade, ele acorda e abre o portão, e lá vou eu para as mais arriscadas manobras para colocar o redondinho em seu devido lugar. Passo e entro no prédio sorrateiramente, não há explicações devidas a dar.

Os gatos me recebem com um olhar o qual tento decifrar: seria “Já de volta?” ou um “Demorou, hein?”. Não faço idéia, dispenso o relógio nessas ocasiões, prefiro desfrutar o tempo sem medidas, sem pensar se é cedo ou tarde demais. Minha irmã estava certa ao dizer que gatos não são interesseiros, são interessantes, e sua faceta de mistério me fascina. Nada muito aberto, muito óbvio, muito fácil de entender é digno de verdadeiro interesse, o bom está em tentar compreender e na dúvida. Sim, pensando dessa forma, meus gatos são esfinges, “Decifra-me ou devoro-te”. Ou "decifra-me, ou dê-me algo para devorar...".

Chamo os dois. O ciúme impede que ambos durmam comigo, o espaço da cama é suficiente para apenas um. Mas tudo bem, tudo calmo, tudo em paz, vou dormir mais calmo, mais sossegado, com a cabeça repleta de indagações, dúvidas e devaneios, com um pouco menos de tempo, mas com a paz comigo mesmo que, de alguma forma, a caminhada noturna me ajudou a ser um pouquinho mais Ricardo Portela. Agora vamos ao sono, e à grande aventura que isso representa, com os intermitentes sonhos, expressando explosões mais variadas do inconsciente. Mas isso é assunto para outra aventura desse lobisomem, meio homem, meio canino, mas com um especial tempero felino.

Um comentário:

Markus disse...

Adorei... realmente vc dá um espaço entre os texto, mas quando chega, arregaça..... adorei mesmo.
Curto muito meus momento de reflexão, normalmente quando o sono não é conciliado com o corpo e os apagão não chega nem por decreto... abraço grande meu querido.....